Claudio Leal

“A tristeza de não ter sido santo” – a frase lamuriosa do escritor católico Léon Bloy se assemelha a chicotadas morais contra a consciência de ex-seminaristas. Mas certamente não retirou de Sebastião Nery a avidez com que se agarrou à vida além-claustro. “A nuvem – O que ficou do que passou” (Geração Editorial), as memórias de Nery lançadas em dezembro de 2009 e já em segunda edição neste janeiro, revela que os tumultos de amor e o aceso da literatura anteciparam sua renúncia ao sacerdócio, sob as arcadas dos templos baianos. E se houver um Deus pletórico, esse retribuiu ao abandono: levou três das quatro irmãs de Sebastião para o convento.

Na despedida do Seminário de Santa Tereza, em 1951, Nery carregava uma mala e o livro “O galo branco”, de Augusto Frederico Schmidt. Obra moldada para aquele momento de transição. Com o estilo de quem anuncia o fim do mundo em ritmo de salmodia, Schimdt encarnava o intelectual nostálgico da santidade, da pureza – e sempre devedor da cultura cristã, a começar por seu emprego na Livraria Católica. Percorreu, entretanto, o mesmo caminho secular do garoto que abandonava o monastério.

“A nuvem”, espécie de leitmotiv literário, conduz as ordenações espirituais e vocacionais de Sebastião Nery, a sua recusa aos dogmatismos, a descoberta do poder emancipatório das palavras. O jornalismo como que o redimiu da perda da fé na Igreja e no Partido Comunista. Ele dedicará mais de cinco décadas aos púlpitos da imprensa: O Diário, Jornal da Bahia, A Tarde, Jornal da Semana, Tribuna da Imprensa, Politika, Última Hora, Folha de S. Paulo, entre outros jornais.

Essa experiência individual ganha ainda mais musculatura se a encararmos como um exemplar da formação católica brasileira pré-Concílio Vaticano II. Penso também em “Informação ao crucificado”, de Carlos Heitor Cony, e “O nariz do morto”, de Antonio Carlos Villaça. Para sairmos da órbita do Brasil, a escritora americana Mary McCarthy se debruçou, em “Memórias de uma menina católica”, sobre esse universo religioso de incensos, pecados e ameaças de inferno.

Pela clareza horaciana, a linguagem jornalística de Sebastião Nery é devedora dos estudos diuturnos do latim e da literatura clássica. “Sepulcro caiado” (1962), o primeiro livro de polemista, trazia libelos de voltagem bíblica contra o ex-governador baiano Juracy Magalhães. Outro aparte: em 1991, na Folha de S. Paulo, numa pequena divergência sobre a posse de Juscelino Kubitschek na presidência, o escritor Otto Lara Resende justificou ao lado ex-seminarista de Nery que não havia golpismo no emprego do termo “restrição mental” (reservatio mentalis) na estrepitosa entrevista com o marechal Henrique Lott, em novembro de 1955. Era um conceito da moral católica habilmente posto por Lara Resende na boca de Lott, para equilibrar uma meia mentira.

Nos primeiros nove capítulos de “A nuvem” ressurgem personalidades enternecedoras. Padre Correia, um asceta antibritânico, cultor de francesismos. “Os russos e os americanos estão disputando para ver quem chega primeiro à Lua. Vão ter uma grande decepção. Quando chegarem lá, encontrarão uma gramática e um dicionário francês”, pregou Correia aos alunos. Ele mais parecia um ex-combatente francês da guerra dos Cem Anos em seu horror à Grã-Bretanha. Recitou um poema de Guerra Junqueiro contra a colonização inglesa na África e praguejou: “Inglaterra, Inglaterra, loba faminta, bêbada infame!”. Por que não se ensinava inglês no seminário? “Língua de bárbaros. Escreve maxixe e pronuncia quiabo”.

Mas, gradualmente, impõe-se o homem político nos relatos, a partir da estreia no jornalismo em Belo Horizonte. A militância comunista impulsiona as primeiras viagens internacionais. O bicho geográfico coça os pés do repórter. Sebastião Nery diz que veio ao mundo a trabalho, mas a condição de viajante se petrificou de tal forma em seu espírito que nos obriga a emendar: a trabalho, e em movimento. “Devo minha vida profissional à Igreja, ao PCB e a Santos Dumont”, costuma brincar com os amigos. Joel Silveira se admirava:

Como é possível a uma pessoa tal poder de mobilidade, um tal domínio sobre as horas?

No capítulo “O comunismo”, o jornalista faz um retrato melancólico de Ilya Ehrenburg, “o Jorge Amado da União Soviética”, autor de O degelo. Residente em Moscou desde a ocupação de Paris pelos nazistas, o escritor ucraniano recebeu em sua casa um grupo de jovens bolchevistas. Coube ao jornalista brasileiro a impertinência: “E Stalin?”. “O intérprete ouviu, não traduziu. Ele entendeu bem. Olhou para mim com uns olhos infinitamente tristes, tive a impressão de que ia chorar. Mal mexeu a boca: – Stalin? Hummm… E fez um gesto leve com a mão, como quem espanta um pássaro. Estava esperando um pesadelo. Já vi muitos olhos tristes. Nunca vi olhos tão tristes quanto os de Ilya Ehrenburg”, conta.

Seguindo a nuvem do memorialista, o leitor sobrevoará Sibéria, França, Grécia, Itália, Portugal, Espanha e países da América Latina. As antenas do repórter se voltam para os homens emaranhados em crises políticas. No Brasil, recorda o convívio com leopardos da vida nacional: JK, José Maria Alckmin, Jânio Quadros, José Aparecido de Oliveira, Vitorino Freire, Abelardo Jurema, Magalhães Pinto, Seixas Dória, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Tancredo Neves, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Nery não contorna temas polêmicos como a briga com Brizola e a campanha de Fernando Collor.

Ninguém descreve com a agilidade de Sebastião Nery os prestidigitadores da vida pública, genialmente retratados na série Folclore Político; às vezes bastava uma pincelada de veneno ou ternura para fazê-lo um mestre do jornalismo e da língua. À época, Millôr Fernandes decifrou: Nery havia entendido que “parar de enfrentar o tigre frente a frente e puxar-lhe o rabo inesperadamente é mais útil à causa e muito mais eficiente.” Durante a vigência da censura, o Folclore Político desanuviou os rancores nacionais e resgatou os proscritos. Puxando o rabo do tigre, trouxe Juscelino Kubitschek de volta às colunas políticas da “Tribuna da Imprensa”, jornal dirigido por Helio Fernandes.

Em “A nuvem”, uma história de JK, talvez o político tratado com maior ternura pelo autor, serve para definir, a um só tempo, as dores do ostracismo e a cordialidade sem herdeiros:

Em fevereiro, março, Paris é muito fria, Juscelino botava o capote, o chapéu, e saía rondando de carro, amargurado, inconsolado com as acusações sem provas de Jânio Quadros. Uma noite, com Olavo (Drummond), subia de carro, dirigindo, pela avenida Champs-Élysées, parou no sinal. Um grupo ia passando, falando alto em português. Um rapaz o vê, olha, aproxima-se, volta:

– Vá parecer assim com Juscelino na puta que o pariu.

Juscelino tremeu a voz:

– Seu Olavo, me deu vontade de descer e bater um papo.

De Brizola, um perfil espinhoso, com minúcias sobre os demaios autoritário do gaúcho. Eleito deputado federal em 1982 pelo PDT, com 111 mil votos no Rio de Janeiro, Nery partiu da admiração por Brizola à amargura com o veio autocrático do líder trabalhista. Trecho de um duro depoimento sobre os momentos finais da briga:

Um ano e meio depois da eleição, quinze meses depois da posse, em 1984, já com tanto desgaste, Brizola afinal convocou uma reunião com toda a bancada no Palácio das Laranjeiras. Tensa, difícil, dramática. Eu já não era mais presidente da Executiva Regional, mas continuava primeiro secretário Nacional. Falei em primeiro lugar. Repeti o que conversávamos em Brasília. Brizola não respeitava o partido, a bancada, ninguém. O PDT era uma garçonière, com uma chave só, na mão dele. Brizola, surpreso, irado, aguentou, enfiando um lápis no bloco.

Noutro salto geográfico, Sebastião Nery e Ulysses Guimarães andam por Roma, em abril de 1991. Ulysses regurgita a tristeza de ter perdido a presidência nacional do PMDB, depois de ter enfrentado uma derrota avassaladora na campanha presidencial de 1989. “Não sei por que o Waldir deixou o governo da Bahia para ser vice, se durante toda a campanha em nenhum instante acreditou nela”, reprovou, prosseguindo no lamento contra outros companheiros de partido. Apesar dos diálogos secos, Ulysses se mostra exuberante nessa crônica do talento sufocado, do animal político diante do olvido, do desespero inconsciente com a velhice. “A Nuvem” ultrapassa o caráter de testamento pessoal. Nery construiu um arquivo implacável do Brasil.

Fonte: Terra Magazine