RIO – Deputado pela Bahia, o golpe de 31 de Março de 1964 me pegou no Rio. No dia 13, fui ao “Comício das Reformas”, na Central do Brasil. Na madrugada de 26, o Palácio dos Metalúrgicos, na Zona Norte, superlotado de marinheiros, trabalhadores, estudantes e políticos, parecia filme da Revolução Francesa. A meu lado, na ponta da mesa, um velhinho negro, alto, magérrimo, cabelos brancos, esfregava as mãos emocionado:
-Eu nunca pensei que ia ver o fim da Lei da Chibata.
De repente a multidão se pôs de pé, gritando:
-João Cândido! João Cândido!
Também me lembro do presidente da Associação dos Cabos e Marinheiros, o cabo Anselmo, com sua fardinha de escoteiro, calça comprida, os cabelos pretos bem penteados, o rosto muito branco.
JANGO
Outra madrugada, de 30 de março. No Automóvel Clube, o ministro da Justiça Abelardo Jurema, os sargentos Antonio Prestes e Garcia e o cabo Anselmo. O presidente João Goulart jogou a última lauda do discurso sobre a mesa e de improviso jurou para o auditório emocionado que a política de conciliação chegara ao fim e as reformas seriam conquistadas nas ruas. Lá atrás, tenso, Oswaldo Gusmão, assessor de Jango, redator do discurso, me contou que, antes de sair de Laranjeiras para o Automóvel Clube, o Presidente se havia trancado com Tancredo Neves, do PSD:
-Presidente, não vá, se o senhor for, o senhor cai.
Jango foi. Jango caiu.
BRIZOLA
Na manhã de 31, entro no hotel Serrador, carregado de jornais. O golpe estava nas manchetes: Jornal do Brasil, Globo, Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa, Diário Carioca, todos unânimes pedindo a derrubada de Jango. Só a Última Hora de Samuel Wagner resistia e defendia Jango.
Acordo com um telefonema de Minas. Magalhães Pinto tinha posto a Polícia Militar nas ruas e o general Mourão Filho marchava de Juiz de Fora para o Rio à frente das tropas. Fui para a casa do deputado Max da Costa Santos, no telefone com Brizola em Porto Alegre. Perguntei:
-Brizola, que vamos fazer?
-Resistir de toda maneira. É um golpe dos americanos com tropas brasileiras. O Jango está hesitando. Aqui no Rio Grande vou com o povo ocupar o palácio. É preciso segurar o Lacerda aí. Ocupem a Mairink Veiga.
RÁDIOS
Fomos. Falamos. Começou a chegar gente. Denunciamos o caráter norte-americano do golpe. De repente, caminhões da Polícia Militar de Lacerda cercavam a rádio. Chamamos os Fuzileiros Navais. Enquanto não vinham, pusemos velhos fuzis e metralhadores com os bicos enfiados nas janelas para dar a impressão de estarmos bem armados. A PM não subiu.
Lembro o ridículo de me ver atrás de uma velha metralhadora apontando em frente para o botequim do português aos gritos:
-Aponta pra lá, doutoire! Aponta pra lá, doutoire!
No carro do deputado Ferro Costa, fomos para a Rádio Nacional, onde muitos falamos. Na saída, o carro não pegou. Ansiosos, nervosos, empurrando o calhambeque, víamos caminhões do Exercito e da PM cruzando a Rio Branco em disparada. Uma chuva miúda caia no asfalto. O carro pegou, entrei exausto, com profunda sensação de derrota e tristeza.
Estava tudo se acabando. Fomos para os “Correios”. Gente cochilando nas escadas, corredores e poltronas. Um homem roncava em um sofá, fuzil do lado. Cabo Anselmo, metralhadora no ombro, dava ordens:
-Prendam, sim! Nada disso! Prendam! Se resistir, fogo!
EXÉRCITOS
Últimas notícias: o II Exercito já havia aderido ao golpe desde meia-noite, o I Exercito acabava de aderir, o IV Exercito prendera Arraes. Só o III estava dividido, em Santa Maria e Passo Fundo. Um deputado me diz:
-Nery, uma frase para a história.
O ministro da Marinha disse aos oficiais:
-“Estão liberados. É duro lutar contra o imperialismo agonizante”.
Ainda consegui rir. Alguém entra esbaforido:
-A Polícia de Lacerda está chegando!
Saímos rápido pelas escadas laterais. Um táxi providencial. Na Cinelândia, cadáveres ensanguentados frente ao Clube Militar. No Flamengo, a UNE queimava. Labaredas nas janelas. Choramos em silencio.