Estelionatarismo ideológico vem sendo, nos últimos anos, fato normal, aceito e festejado no Brasil. Envolve um debate surrealista entre ser de direita ou de esquerda. O binarismo que envolve o debate é de pobreza franciscana. Alimenta a falsificação com muitos personagens destituídos de formação, princípios e valores, autoproclamando-se herdeiros das tradições que marcaram a esquerda brasileira. Na outra ponta, a velha direita recusa-se a assumir com firmeza as propostas sociais e econômicas que estão nas suas origens. Esquerda e direita não são fantasmas. Nelas existem desde a velha esquerda autoritária, com seitas dotadas de identidade teórica própria, até a esquerda democrática. Expressada, principalmente, no pensamento social democrata. A velha direita abarca desde o vetor totalitário golpista, com características diversas, até a direita liberal e cosmopolita comprometida com os valores democráticos.

Muitos da direita acreditam que os governos Dilma e Lula são de esquerda. Tomam a nuvem por Juno. Nenhum desses governos fez qualquer reforma social (e teve tempo e base parlamentar para isso) – nem a agrária, nem a urbana, nem a tributária, nem a política. Nunca passou de assistencialismo. O PT praticou a corrupção, desmoralizando a esquerda sem ser de esquerda, oferecendo munição à direita – ela fica lhe devendo esse favor.

Quem faz essa constatação é o historiador Joel Rufino dos Santos, respeitado nacionalmente como um pensador de esquerda.

Há 50 anos, ao lado de Rubem Fernandes, Pedro Ulhoa Cavalcanti, Nelson Werneck Sodré e outros pesquisadores, lançava no governo João Goulart, através do Ministro da Educação, cinco volumes do livro “A História Nova do Brasil”. Logo recolhido, nos primeiros dias, pelas forças vitoriosas de abril de 1964. Não é, portanto, um diletante neoliberal, designação que passou a ser palavrão no Brasil vivente, onde o primitivismo intelectual e a ignorância sem limite vem fazendo escola.

“Algo deve mudar para que tudo continue como está”. No livro “O Leopardo”, Tomasi di Lampedusa, retratou o conflito entre tradição e modernidade, deflagrada na Itália após a revolução que determinou a sua unificação. No Brasil, em 2014, o ensinamento de Lampedusa é cumprido com rigor espartano. Aliado a uma visão autoritária extremamente perigosa ao Estado democrático. A essencialidade dos valores democráticos é o culto ao pluralismo, onde os governantes devem ter a consciência de serem transitórios. Permanente é o Estado que deve ser administrado visando o bem comum. Quando é aparelhado e os detentores do poder sentem-se proprietários das funções públicas, as inconstitucionalidades, os desvios fraudulentos e a corrupção tornam-se acontecimento normal. O dinheiro público transforma-se em alimento suculento para os apetites vorazes. A sucessão de transgressões vira enfadonha a sociedade perplexa e impotente vê escorrer pelo ralo da corrupção os impostos que paga religiosamente. E não enxerga essa montanha de dinheiro se refletir em investimentos e melhoria da qualidade de vida da população. Acreditar que basta anunciar bondades assistencialistas e atenderá as demandas econômicas e sociais que se acumulam, é equívoco mortal. Os governos Lula e Dilma são arautos do auto-engano, retratado por Lampedusa de que é preciso mudar para que tudo continue como está. Não pode ser catalogado de esquerda um governo que refuga qualquer reforma que modernize uma sociedade injusta e perversa como a brasileira.

Hoje o grande impasse nacional reside na extravagância de uma mentira: as oligarquias refalsadas, corruptas por formação histórica, patrimonialistas, são fiéis aliadas de um governo que se autoproclama progressista e modernizador. Surrealismo em estado bruto.

 

Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi Deputado Federal (1978-1991). É autor de vários livros sobre a economia brasileira.