RIO – Desço no aeroporto Simon Bolivar de Caracas, na Venezuela, em 1979. Às seis horas de uma manhã fria, dois rapazes sonolentos carimbam os passaportes e conferem as bagagens na alfândega. Não abrem nada.Fazem sinal com a mão, todos vão passando. Minha maleta gorda, estufada, passou sem uma espiada. Mas eu levava na mão revistas e um pacote de livros.Um rapaz de bigodes pretos e olhos desconfiados acordou:

– O que é isso ai?

– Revistas do Brasil. (Eram Veja, Isto É, Status)

Pegou as tres, devolveu duas. Folheou longamente a Status. Olhava as mulheres nuas, levantava os olhos para mim, admirado. A fila longa, e ele vendo as curvas morenas das moças nuas.

– E esse embrulho?

– São livros.

– Sobre que?

– Sobre política.

Meteu a mão no bolso, tirou um canivete, rasgou o pacote, foi abrindo os livros em cima do balcão. (“Portugal um Salto no Escuro”; “Socialismo com Liberdade”; “16 Derrotas que Abalaram o Brasil”.

– De quem são?

– Meus.

– Senhor, é muito cedo, estamos com pressa, não devemos brincar. Pergunto quem escreveu esses livros.

– Eu. Eu mesmo. Não tenho cara de autor?

Ele levantou os olhos, arregalou, devolveu o pacote todo aberto:

– Não tem não.

Fui-me embora, sem cara de autor.

Entrei no Hotel Hilton para a “Conferencia Internacional Sobre o Exílio na América Latina”, onde o Brasil estava representado por Jorge Amado, Rute Escobar e por mim e encontro no hall Júlio Cortázar, o argentino dos contos fantásticos.

Realista como sua maravilhosa ficção, alto, 1 metro e 90, longos cabelos negros, olhos azuis no rosto branco e amassado, incrivelmente jovem apesar de seus mais de 60 anos, um garotão com sorriso de menino. E lembrando Hemingway. As mãos pareciam de outro. Velhas, enrugadas, veias grossas e pintas negras. Mãos de avô.

Quando vejo Nicolas Maduro na TV lembro a alfândega de Caracas.

Com aquele bigode de pistoleiro ele não tem cara de Presidente.

AMÉRICA LATINA

No almoço, conto a Cortázar a conversa na alfândega, ele ri muito:

– Há pouco tempo, chegando ao México, o homem pergunta:

– Profissão?

– Escritor.

– Sim, escritor. Mas em que coisa o senhor trabalha?

Ele falava com seu rosto de meninão gigante:

– Comecei a preocupar-me a fundo com os problemas da América Latina a partir da revolução cubana. Eu era um homem apolítico e indiferente e vivia em meu mundo de literatura, no qual aliás continuo e em que me sinto muito bem. Mas a revolução cubana detonou minha consciência pessoal e me mostrou que eu era latino-americano e portanto tinha obrigações para com nossos povos.

– Como você consegue compor política com a literatura?

– Esse é um velho e sempre novo problema com que todos nos defrontamos diariamente. Estou acostumado a ler muitos livros onde se faz política através da literatura e o resultado é que se o conteúdo literário não tem qualidade suficiente para transmitir o conteúdo político, resulta um livro medíocre. Esse difícil equilíbrio de não sacrificar a literatura à política nem a política à literatura é o fio da navalha.

– Garcia Marquez disse que só escreveria quando Pinochet caísse.

– Gostaria de ter mais tempo e tranquilidade para meus livros. É por isso que nos últimos anos tenho escrito apenas contos. Primeiro, porque gosto de contos e também porque podem ser escritos em pouco tempo, entre duas viagens e duas entrevistas. Já uma novela exige uma disponibilidade muito grande da qual a história hoje nos priva. A culpa de eu e o Gabo (Gabriel Garcia Marquez) não escrevermos novelas é de Pinochet e Vidella, para citar apenas dois, porque, na medida em que lutamos contra eles, não restam senão tiras de tempo para escrever. Nossa literatura sai perdendo, mas creio que nem o Gabo nem eu lamentamos.

EXÍLIO

– E o exílio? Como vai o longo exílio em Paris, tantos anos longe de sua Buenos Aires?

– Claro que não podemos esquecer a infâmia, a ignomínia, a profunda injustiça que é o exílio. O exílio é o limbo na penumbra. Mas nós todos exilados ou lutadores contra o exílio precisamos mudar a visão do exílio, Tirar sua visão negativa, que é a grande vitória das ditaduras e transformar o exílio numa visão dinâmica, numa formosa e combativa posição de luta. Precisamos ver o exílio como outra maneira de viver. Destruir o exílio dentro do exílio e fazer dele um sol de luta.

Saiu andando com suas pernas de gigante e cara de menino grande.

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