RIO – Na Recordação da Casa dos Mortos, de Dostoievski, editado pela José Olympio, o genial Goeldi comoveu gerações de leitores com suas ilustrações inesquecíveis: aquelas filas intermináveis de russos, humilhados, ofendidos e recurvados, enrolados em trapos negros, caminhando sobre a neve para a Sibéria, enxotados pela tirania dos tzares.

Chego ao aeroporto de Domodedovo, um dos quatro de Moscou, para pegar o avião até Volgogrado, primeira etapa da minha viagem à Sibéria e, das janelas, vejo uma cena bela: longos e elegantes TUS/2 turbinas (correspondem ao Boeing 737; os Iliushin correspondem ao 707/4 turbinas, mas são mais compridos e mais finos) estão pousados sobre um tapete branco e infinito e, andando para eles, grupos e mais grupos de homens, mulheres e crianças, todos bem-vestidos, bem calçados, grandes gorros peludos, de couro de veado, botas pretas, marrons, vermelhas, luvas e capotes de pele de todos os tipos e de todas as elegâncias. A Unesco proclamou 1981 o ano de Dostoievski: em fevereiro fez 100 anos que ele morreu e em novembro 160 que ele nasceu. Um século e a mudança foi total. Logo, não há por que desacreditar da capacidade do homem de construir seu amanhã.

A neve cai sem parar, grossa, intensa. Como é possível os aviões chegarem e saírem? Caminhões enormes, como jamantas, empurrando largas navalhas negras, do tamanho das pistas, vão passando e raspando a neve. O avião desce, a neve volta, vem de novo o caminhão com sua navalha. Um avião, um caminhão, um avião, um caminhão, na brincadeira de derrotar a neve.

Às 9 horas da noite, chamam meu voo. Perto do avião, um susto. Está absolutamente coberto de neve. Um meigo e longilíneo tubo de neve, como doce fantasma, arriado sobre o lençol branco. Será que vai decolar? As turbinas esquentam? Lá dentro, um aviso. Vamos ter que esperar um pouco para tirarem a neve que cobre o aparelho. Tiram na hora, porque, se tirarem um pouco antes, ela cai de novo e novamente encobre. Um caminhão se aproxima com grossos tubos, soprando bafo e derretendo a capa branca. São turbinas de velhos aviões que eles usam para, engatados nos caminhões, lançarem os jatos de ar.

Daí a pouco, outro aviso: o aeroporto de Volgogrado fechou. A neve lá cai tão forte que se torna um guarda-chuva compacto sobre as pistas, impossibilitando a descida. É preciso esperar, e esperar na pista, para, quando abrir lá, haver tempo de limpar de novo nosso tudo, decolar rápido e ver se descemos uma hora e meia depois, antes que a borrasca volte e feche mais uma vez. Uma hora, duas, três. Meia-noite, levantamos. Dois minutos depois, uma lua gorda boiando no céu azul-marinho, todo estrelado. Del mil metros de altura e aquela lâmina sólida, cinza, como acrílico lá embaixo.

E fico a pensar como é vário o mundo tão diferente as realidades. Por mais que saibamos o que é a neve mesmo depois vista aqui e ali em tantos países, uma coisa é você vê-la como turista, entrar e sair do hotel, dar uma andada na rua, e outra, muito outra, é a experiência de um povo que tem de conviver, cada ano, meses inteiros, 6, 8, 10, 12, com tudo coberto de gelo e frio. Os rios e lagos endurecem. As ruas e calçadas sobem centímetros, nos parques metros de neve acumulada. E é preciso ir tirando, e ela voltando, hora a hora, dia a dia, cada manhã, meses direto. Uma batalha interminável. Brinco com os russos:

– Eu pensava que vocês tinham ficado livres de Napoleão, que atolou sua invasão na neve das estepes russas. Mas não, todo ano é uma guerra certa, fixa, marcada, de meses, guardando tudo, reservando tudo, diminuindo a produção, até a primavera voltar e com ela o sol e as flores e os frutos da terra.

E eles me respondem, sábios:

– É, mas é o inverno que nos faz fortes. Ele nos acostuma a resistir e esperar. E, sobretudo, a saber vencer as dificuldades.

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