RIO – Saí do almoço, fui direto à enciclopédia ver a definição de águia: – “Ave de soberbo voo, garras potentes e tarsos plumosos, nidifica e habita nas montanhas”.
Era ele. Nunca ninguém me dera tão forte a ideia de ave, de uma ave soberba. Cara de ave, nariz de ave, longos dedos de ave, finos e saltitantes olhos de ave, apesar de tudo não voava nem cantava. Era um homem. Um homem excepcional, como a águia é uma ave excepcional.
Milton Reis, deputado cassado, poeta, me telefonou convidando para almoçar em sua casa com Agripino Grieco. Fui pensando nos 85 anos do velho mestre que de tão longe me abriu as cancelas da literatura, nos primeiros anos do seminário, através de seus livros que me encantaram pela limpidez, pela autenticidade, pela coragem de dizer que A era A e Z era Z mesmo, pela agressiva competência com que exerceu a crítica literária acima de todas as corriolas da chamada vida literária, furando sem piedade a pança inflada de muito Sancho, com seu estilo de espada em punho de Dom Quixote.
Carcaças Gloriosas, Zeros à Esquerda, Amigos e Inimigos do Brasil, O Boletim de Ariel, o rodapé em O Jornal, eu lera tudo há tanto tempo que fui imaginando encontrar os restos de um homem comido pela exaustão de setenta anos de contínua atividade intelectual.
Pois não era nada disso. Da porta, a voz entrou sala adentro, tinindo, retumbante, como de um jovem. E passou três horas falando, contando histórias, opinando, discutindo, citando trechos e trechos, prosa e verso, como torcedor de futebol cita escalação de time, com a naturalidade e o vigor de quem fez das ideias o pão de cada dia.
A memória era inimaginável, inesgotável. Sabia e lembrava tudo da literatura universal e nacional, autores, livros, personagens, datas, dias, meses, anos, minúcias, detalhes, como se fosse a vida dos filhos. E numa linguagem forte, enxuta, precisa, a palavra exata como fio de navalha, as frases saltando da boca, tonada, semicantadas, troantes, irrepreensíveis. E, sobretudo, vivas, vivíssimas, surpreendentemente acordadas e ensolaradas em um homem de oitenta e cinco anos.
As três horas de conversa dariam meio livro. Guardei um pouco apenas do que ele disse entre o aperitivo, o excelente almoço e a sobremesa. Milton Reis, Geraldo Mascarenhas, Aurélio Ferreira Guimarães foram testemunhas de que não vai aqui nem um terço do que ele lampejou, como diria com propriedade um jornalista de seu tempo. Quer dizer, de seu primeiro tempo, porque ele foi um homem de todos os tempos.
1 – Tenho memória trágica, recordo tudo. Se houvesse fosfato para diminuir memória, tomava. Às vezes ela dói.
2 – Elegeram-me presidente de honra da Academia de Letras de Caxias. Agora, sou duas vezes imortal: tomei posse e voltei.
3 – O Jorge Amado trocou a Gabriela pela Tereza Batista. É o lenocínio literário.
4 – Mineiro dá bom dia porque bom dia volta logo. É a terra onde olho vê, mão tira e pé corre. Por isso dá tanto banqueiro lá. O que é o batedor de carteira senão um banqueiro apressado?
5 – O primeiro artigo sobre o Gilberto Freire quem escreveu fui eu. Casa Grande e Senzala é um livro bem pensado e mal escrito. Pensado da casa grande e escrito na senzala.
6 – Há sujeitos muito burros que às vezes conseguem fazer uma coisa boa. É a faísca da ferradura na calçada.
7 – Em 1906, eu era funcionário do Ministério da Viação e ia ser promovido. O decreto estava lavrado. Fiz um discurso para o Aarão Reis, meu chefe, e não me contive. Disse que ele era “o primeiro de nossos engenheiros, em ordem alfabética”. Ganhei a frase e perdi o cargo.
8 – O Eça de Queirós estava hospedado em hotel de Évora. Chamaram-no. Saiu parecendo um sudário com aquele caco de vidro no olho. Queriam um adjetivo original, exótico, para uma placa em homenagem a um advogado. Respondeu: – “Honesto”.
9 – O Carneiro Leão entrou na Academia. Estranhei: – Ate agora os animais tinham entrado de um a um. Dois de uma vez é demais.
10 – Alguém me pergunta se deixei a Academia em paz. (Até hoje ninguém criticou tanto os imortais da Presidente Wilson como o gênio irônico do Méier).
- Cada dia mais importantes nas colunas sociais e menos notáveis
nos rodapés da crítica literária.