RIO – No dia em que se fizer o inventário completo das injustiças cometidas pelo golpe de 1964, é preciso contar a ignominia que foi a alegação para a cassação do embaixador do Brasil em Roma, Hugo Gouthier.
O simpático e civilizado Gouthier (que conheci embaixador do Brasil no Irã, no governo do Xá da Pérsia, antes de Khomeinni) foi cassado porque, no governo de Juscelino, comprou, para a sede da embaixada do Brasil em Roma, o Palácio Pamphilli. A UDN alegou que foi “uma negociata”. Não conheço negócio melhor para o país, feito por qualquer Governo.
Os herdeiros da família Pamphilli não sabiam o que fazer do velho palácio barroco, ocupado desde a guerra por mais de 200 famílias, que viviam nos apartamentos dos fundos, impedindo a liberação dos magníficos salões com afrescos de Pietro da Cortona, toda uma galeria de Borromini e a belíssima arquitetura da Piazza Navona.
Gouthier comprou o “palazzo” com quatro promissórias e aos poucos foi tirando os moradores e desocupando tudo. Quando deixou a embaixada, o Brasil era dono da mais valiosa sede de embaixada em Roma (por 2 milhões, pagos em vários anos). Só as obras de arte que estão lá valem dezenas de vezes o que ele gastou. Qualquer multinacional daria hoje milhões de dólares para ter uma sede como aquela.
O palácio Pamphili vai da esquina da Piazza Navona até a Igreja de Santa Inês, em frente da qual fica a magnífica “Fonte dos Quatro Rios”, de Bernini, o mesmo que fez a colunata da Praça de São Pedro: Ganges, Nilo, Danúbio e Prata, até então os quatro maiores do mundo, pois ainda não conheciam o Amazonas.
Quando vendeu o palácio, a família Pamphili não quis vender também “o apartamento do Papa”, a parte que liga o palácio à Igreja de Santa Inês, da mesma altura do palácio, com os mesmos quatro andares, um anexo estreito, como se fosse uma casa de quatro andares.
Ali o Papa Inocêncio X (Cardeal Giovanni Battista Pamphili), que construiu o palácio para a cunhada Olímpia Maidalchini, depois de 1600, ficava hospedado quando ia passar os fins de semana com ela. Até hoje estão lá, originais, a cama, os móveis, os objetos todos.
Essa mulher era uma megera, cobrava impostos sobre pão e água que o povo consumia. Conta a lenda romana que o Papa não dormia apenas lá. Dormia também com a cunhada viúva. E até hoje há quem diga que, nas noites sem lua, se ouve a carruagem de Dona Olímpia fazendo barulho na praça e nos apartamentos da embaixada. (Quando Adido Cultural do Brasil morei lá, na embaixada, um punhado de tempo, e dona Olímpia não me deu a graça de vê-la nem de ouvi-la).
No contrato de compra do palácio, Gouthier pôs um item deixando para o Brasil a opção de compra do “apartamento do Papa”. Quando a família resolveu vender, foi no governo Figueiredo. Não sei quem era o embaixador do Brasil. Devia ser um cabeça de bagre. Pediram 800 mil dólares. O Brasil, que tinha direito de compra, não quis comprar. Continuaram achando que era “a negociata de Gouthier”.
O Brasil não quis, Berlusconi (o Roberto Marinho de Roma, dono de televisões, revistas e jornais, depois deputado e primeiro ministro) comprou por 10 milhões de dólares (só o apartamento, menos de 10% do edifício todo, que o Brasil comprou por 2 milhões, em vários anos).
Depois, Berlusconi vendeu “o apartamento do Papa”. Por 15 milhões de dólares.
E pensar que uma das razões da cassação de Juscelino por Castelo Branco foi ter autorizado a compra do Palácio Pamphili para a embaixada do Brasil. E a de Gouthier também.