RIO – Morto Lampião em 1938, Ângelo Roque, o “Labareda”, companheiro de cangaço, entregou-se às autoridades de Jeremoabo, no sertão da Bahia. Foi levado a júri. Tarcílo Vieira de Melo, futuro líder de Juscelino na Câmara, jovem promotor mas já com sua poderosa oratória, acusou-o fortemente. Oliveira Brito, juiz, também depois deputado e ministro de João Goulart, chamou-o de “desordeiro”. “Labareda” levantou-se indignado:
– Desordeiro, não, seu juiz! Os senhores me respeitem. Não sou um desordeiro, sou um cangaceiro. Não fui pegado no mato. Cheguei aqui de armas na mão e me entreguei, confiando na palavra dos homens do sertão.
Vieira me disse que, a partir dali, condenaram-no, mas sem ataca-lo.
No dia 5 de agosto, fez 65 anos que um pistoleiro errou o tiro e despachou a encomenda errada. E detonou uma das mais graves crises da historia do pais. Gregório, chefe da Guarda de Getúlio Vargas, encarregou Climério,subordinado e compadre,de providenciar a morte de Carlos Lacerda.
Climério pediu a Soares, também protegido de Gregório na Guarda, que arranjasse alguém para fazer o serviço. Soares contratou o pistoleiro nordestino Alcino. Os três pegaram o táxi de Raimundo, que fazia ponto perto do Catete, e foram para a rua Tonelero, 180, onde Lacerda morava.
Mas houve um erro de luz. Alcino estava acostumado a fazer tocaia no sol do sertão, naquele mundão aberto e claro, onde se vê tudo o tempo todo.
No depoimento ao coronel Adil de Oliveira, chefe do Inquérito Policial-Militar instalado no Galeão, Alcino confessou que “enfrentou problemas com a fraca iluminação na porta da garagem e atravessou a rua para atirar de um ângulo mais próximo”. E acabou matando o major-aviador da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, amigo e segurança de Lacerda.
Lacerda levou apenas um tiro no pé. O anjo da guarda de Lacerda funcionou magnificamente. O pistoleiro fez tudo errado. E tudo o de errado que Lacerda fez acabou dando certo para ele e o salvando. Presos todos, primeiro o motorista Raimundo que “abriu o bico”, depois Climério, Soares, Alcino e Gregório, a historia pôde ser fielmente reconstituída e contada.
Alguns livros são bem detalhados: “A Era Vargas” (José Augusto Ribeiro), “Carlos Lacerda, a Vida de um Lutador” (John Foster Dulles), “Depoimento” (Lacerda), “Uma Crise de Agosto : o Atentado da Rua Tonelero” (Cláudio Lacerda),“Quem Matou Vargas?” (Carlos Heitor Cony).
Foi um faroeste urbano. Após um compromisso político, Lacerda e o filho Sergio, de 15 anos, chegavam em casa pouco depois da meia-noite, levados em um pequeno carro pelo major Rubens Vaz, integrante de um grupo de oficiais da Aeronáutica que lhe dava proteção. O da escala, naquela noite, era o major Gustavo Borges, futuro secretario de Segurança de Lacerda no governo da Guanabara. Mas não pôde ir e foi o Rubens Vaz. Para a morte.
Na porta do edifício onde morava Lacerda, ainda conversaram um pouco e Lacerda saltou com Sergio, em direção à entrada principal iluminada do prédio. Mas Lacerda tinha esquecido as chaves e foi até a garagem pedir ao garagista para abrir a porta. Saiu do claro para a meia-luz. Com uma 45 na mão, Alcino atravessou a rua para atirar mais de perto.
Quando passava por trás do carro, o valente major Vaz saiu sem pegar seu revolver que estava no porta-luvas e se atracou com o pistoleiro, tentando tomar-lhe o revolver. Mas Alcino lhe deu dois tiros e ele morreu na hora.
Ao ouvir os tiros, Lacerda, com seu revolver na mão, quis sair para a rua, mas o filho se agarrou com ele e não deixou. Mesmo assim, da porta da garagem, Lacerda deu alguns tiros, que não atingiram ninguém. E do outro lado da rua também houve outros tiros, um dos quais acertou Lacerda no pé.
O major Vaz, já morto, e Lacerda, foram levados para o hospital Miguel Couto. Lacerda fez uma radiografia do pé e extraiu a bala de um 38.
Esse tiro no pé criou muitas lendas. Uns diziam que o próprio Lacerda atirou no próprio pé, pois seu revolver era um 38 e o do Alcino uma 45. Outros garantiam que não houve tiro nenhum no pé, que foi só engessado, tanto que no hospital não ficou registro algum. Mas algumas testemunhas viram Lacerda chegar ao hospital capengando, com o pé ensanguentado.
Ao sair do hospital, Lacerda foi para casa em um taxi, com Armando Falcão (deputado do Ceará, depois ministro da Justiça de Juscelino e Geisel):
– “Acho que vou enlouquecer. Foi uma enorme desgraça. Talvez eu tenha matado o Vaz. Dei uns tiros a esmo, já sem óculos, e tenho a impressão de que ele estava à minha frente. Que horror”!
Quando chegou em casa, já muita gente estava lá, jornalistas e políticos. Entra o brigadeiro Eduardo Gomes e faz uma frase para a historia:
– Pela honra da Nação, esse crime não ficará impune.
E fez outra para o folclore político:
– Carlos, o melhor remédio para esse seu pé é filé mignon. Mande buscar um filé cru, sangrando, e ponha no ferimento. Vai ficar logo bom.